1. A conferência A Língua Portuguesa: Presente e Futuro que a Fundação Gulbenkian organizou, em Lisboa, com o alto patrocínio da Presidência da República, foi um acontecimento a todos títulos notável. A começar pela média de assistência de mil pessoas, nos dois dias em que ela decorreu. «Afinal, em Portugal ainda há causas e disponibilidades, não é tudo um silêncio, uma tristeza, um necrotério», surpreendeu-se o próprio Presidente Jorge Sampaio, no vibrante improviso com que encerrou os trabalhos. «Descobri aqui, nestes dois dias tão estimulantes para mim, que há imensa gente disponível à volta da causa do Português», rematou o chefe de Estado português, alardeando ao mesmo tempo o seu conhecido humor britânico, a propósito do período pré-eleitoral que se vive actualmente no país: «Apressem-se na redacção das conclusões desta conferência e remetam-nas para cada um dos partidos políticos, para eles tomarem a devida nota nos seus programas [para as legislativas marcadas para 20 de Fevereiro próximo]!»…
2. Segundo os organizadores da conferência, essas conclusões, bem como o conjunto das comunicações constantes dos cinco painéis em que ela assentou, serão publicados em livro, já em Janeiro. Não nos querendo substituir, obviamente, a essas a(c)tas, já é possível tecer, mesmo assim, alguns comentários do que ouvimos, que aqui deixamos de forma muito sintética:
1) Embora não tenha havido, como acentuou o comissário da conferência, o ensaísta Eduardo Prado Coelho, a “contraposição” entre “linguistas” e “literários”, ficou patente a relevância que hoje têm as ciências cognitivas para a aprendizagem das línguas maternas. A formação dos professores tem de ter este factor em conta. «As propostas relativamente às questões políticas e pedagógicas da língua e da leitura deveriam ter em conta o ponto de vista científico», sustentou um dos conferencistas, o cientista José Morais. Tal não significa que o texto clássico seja arredado do ensino das línguas. Antes pelo contrário. É importante como elemento de consolidação das identidades culturais – essencial num mundo que tende para a massificação cultural;
2) Outro ponto consensual foi a urgência de didácticas apropriadas para os filhos dos imigrantes a trabalhar em Portugal, e que são fundamentais para o desenvolvimento económico do país e o rejuvenescimento da sua população. No passado, a escola portuguesa falhou redondamente em relação às comunidades africanas, principalmente cabo-verdianas, cujo insucesso na escolaridade se deveu em muito às dificuldades que sentiram na aprendizagem do português. No limiar deste novo século esse é um fracasso que não poderá repetir-se. O domínio da língua do país de acolhimento é factor primacial de inclusão social;
3) A Língua Portuguesa e o Desafio das Novas Tecnologias e Convergências e Divergências no Espaço da Língua Portuguesa foram dois dos painéis mais estimulantes. No primeiro deles, o director da RDP África, o jornalista David Borges, leu a comunicação mais aplaudida de todas, tal a “pontaria” das suas críticas à inacção dos sucessivos governos portugueses em matéria de política externa da língua. David Borges fez ainda uma alusão ao papel do Ciberdúvidas e contra a falta de apoios oficiais a este verdadeiro serviço público em prol da Língua Portuguesa quase com oito anos de existência. Foi um gesto que nos tocou profundamente e pelo qual lhe ficamos muito reconhecidos.
4) Em Divergências no Espaço da Língua Portuguesa a investigadora moçambicana, Perpétua Gonçalves, divulgou números extraordinários sobre a realidade da Língua Portuguesa no seu país. Por exemplo: em 1975, ano da independência de Moçambique, só dez por cento da população falava o português; em 1997 era já quarenta por cento, número ainda maior hoje em dia. O número de moçambicanos que tinha o Português como língua materna era residual, passando, no recenseamento de 1997, para cerca de seis por cento. Outra nota importante revelada por Perpétua Gonçalves: «a esmagadora maioria destes moçambicanos vive nos centros urbanos», o que faz com que o Português seja ainda, essencialmente, uma língua de comunicação urbana, em Moçambique.
5) Ficou a saber-se, ainda pela mesma linguista, que há hoje, em Moçambique, uma grande preocupação entre os falantes na utilização do Português padrão de Portugal. «O maior problema – ressalvou Perpétua Gonçalves – que enfrenta o ensino da língua com a norma oficial do português europeu é que esta não é conhecida pela maior parte dos falantes, nomeadamente pelos professores primários, encarregados de a transmitir». Obviamente caberia aqui uma palavra à cooperação portuguesa no domínio do ensino. Em Moçambique, em Angola – onde se registam números superiores tanto de falantes de português como na condição de língua materna –, ou na Guiné-Bissau, com um cenário bem mais perturbante...
6) No painel dedicado às políticas da língua portuguesa, na comunicação mais contracorrente da conferência, o ex-comissário europeu António Vitorino defendeu a tese do Inglês como única língua de trabalho na União Europe[é]ia: «É financeiramente incomportável a manutenção do actual estatuto de paridade de todas as línguas, nomeadamente depois da UE alargada a 25 países.» Perspectiva contrária defendeu o professor universitário Adriano Moreira, que invocou os mesmos problemas desde os primórdios da ONU e «a importância decisiva» para países como Portugal a sua afirmação pela difusão e promoção da sua língua nos principais areópagos internacionais. Neste ponto, a generalidade dos participantes insurgiu-se contra a acção desenvolvida pelo Instituto Camões. O professor universitário Victor Aguiar e Silva, a quem coube a comunicação de abertura desta conferência, apontou mesmo, um a um, os «pontos negros» da entidade que nasceu para ser o contrário do que é: ausência de objectivos, falta de coordenação com outras instituições e orçamentos desajustados às necessidades reais;
7) No final dos trabalhos deste encontro da Língua Portuguesa, o comissário Eduardo Prado Coelho adiantou um balanço sucinto, aludindo a quatro conclusões: a) a importância da criação de um observatório da língua portuguesa, proposta pelo professor universitário António Dias Figueiredo (ide[é]ia que não é nova, aliás: o nunca dinamizado Instituto Internacional de Língua Portuguesa já se propôs criar um, bem como o próprio Instituo Camões); b) a importância da aprendizagem do Português no ensino pré-escolar; c) a necessidade de acesso aos clássicos (muitas vezes o mercado não os disponibiliza); e d) a reformulação da orgânica da promoção da língua e da cultura portuguesa no estrangeiro.
3. Numa outra comunicação muito aplaudida, disse o jovem escritor angolano Ondjaki, cujo belíssimo texto fica desde esta data em linha na Antologia:
«Depois de Língua conquistadora, a Língua conquistada virou raiz reprodutora – arma e fogo artificial; embrião e simultânea gravidez.
«E é sabido pelos mais-velhos que uma Língua grávida pode parir culturas, cores novas e contornos imprevistos em pessoas humanas. E todas as grávidas levadas, e todos os séculos extraídos e a terra sangrando em lágrimas de saudade, e todos os navios idos haviam de levar, além de fomes e músculos, sementes de uma flor mestiça com condimentos de diferença e criativa ramagem. Na fogueira do tempo, as chamas cercaram o lacrau, o lacrau picou o próprio corpo, e o veneno circulou feito febre nova, nova temperatura, temperatura de uma nova errância.»
Não é afinal esta errância – essa mesmo que fez da Língua Portuguesa a língua hoje compartilhada por oito povos – que explica a causa que mobiliza tantos e tão apaixonadamente, e que impressionou tanto o Presidente Jorge Sampaio?
P.S. – Na rubrica O Português na 1.ª Pessoa, fica também em linha o discurso do Presidente Jorge Sampaio, na sessão de abertura desta histórica conferência A Língua Portuguesa: Presente e Futuro.