Diário (excertos) - Antologia - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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Diário (excertos)

Coimbra, 23 de Julho de 1983

Ensinam português em França. E recebi-os e honrei-os como se fossem missionários da pátria a pregar civilizadoramente a um povo civilizado a boa nova de uma língua e de uma cultura que ele desconhece. Língua e cultura que deram a volta ao mundo, e continuam clamorosamente à espera da sua hora europeia.

Coimbra, 9 de Outubro de 1983

Encontro e larga conversa a sós como primeiro Chefe de Estado1 de uma nossa antiga possessão africana. Retirados, de entrada, num salão oficial, e depois a voar de helicóptero num céu de Outono português, éramos como que a imagem exígua e algo transcendente de duas nações em diálogo, uma já velha, feita, projectada, e outra ainda jovem, a fazer-se, mais realidade política do que espaço pátrio. Uma, sedimentação de um povo; outra, meta de uma população. A uni-las indissoluvelmente, a mesma língua, que circunstâncias históricas haviam tornado veículo de domínio e agora instrumento inegualável de aglutinação, com as suas potencialidades literárias, religiosas, jurídicas, científicas e técnicas. Natural e indiscriminadamente, os motivos de entendimento e colaboração foram-se cruzando, num desinibido pragmatismo, os sentimentos e os interesses cada vez mais aproximados no coração e na razão, ambas as partes a dar e a receber, uma rica de passado e de presente, outra opulenta de futuro. Divergências inevitáveis de forma ou de fundo na maneira de erguer o edifício social, em nada prejudicavam a comunhão fraterna. Desafiavam apenas a abertura e a sinceridade mútuas. Os condicionalismos de tempo e de lugar é que ditavam as leis da acção. Elas e a liberdade, reciprocamente exaltada. À pressa insofrida de chegar, opunha-se, contudo, a consciência sofrida de que é longa e lenta a qualquer realização colectiva. Mas era também preciso considerar que não há épocas iguais, nem oportunidades iguais. Por isso, as objecções queriam apenas prevenir erros e desilusões escusados.

Assim clarificadas as intenções, as reservas impertinentes iam-se desvanecendo pouco a pouco. E o acordo total deu-se já no Doiro, quando os olhos do meu interlocutor, do alto do mirante aeronáutico, puderam ver à luz macia da tarde, deslumbrados, a expressão concreta da exemplaridade nacional que eu desde a primeira hora convictamente lhe propunha: um solo ordenado por homens ordenados.

1 Samora Machel

Fonte

in Diário XIV, Coimbra, Coimbra Editora, 1987

Sobre o autor

Autor de uma produção literária vasta e variada, largamente reconhecida. Nasceu em S. Martinho de Anta em 12 de agosto de 1907 e morreu em Coimbra em 17 de janeiro de 1995. Destacou-se no domínio da poesia com Orfeu Rebelde, Cântico do Homem; na obra de ficção distingue-se A Criação do Mundo, Bichos, Novos Contos da Montanha, entre outros. O Diário ocupa um lugar de grande relevo na sua obra. Recebeu o Prémio Camões em 1989 e o prémio Vida Literária em 1992.