A propos de la lusophonie - Antologia - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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A propos de la lusophonie

Regressei há poucos dias de Paris, onde estive a convite do Festival Atlântida, uma iniciativa, já na segunda edição, que se propõe divulgar em França a literatura e a música dos países de língua portuguesa. Havia cinco escritores portugueses, cinco africanos e um brasileiro.

Os portugueses falaram todos em francês, sempre em francês, num francês esplêndido, expurgado do mais remoto rumor do idioma pátrio. Nós, africanos, falámos em português, e o brasileiro, Chico Buarque, hesitou entre uma língua e outra.

Lídia Jorge explicou que iria falar em francês por uma questão de delicadeza para com os nossos anfitriões. Isabel Barreno disse que falar francês lhe provocava dores nos maxilares. Apesar disso, corajosamente, falou em francês. Mário Cláudio insurgiu-se, no primeiro encontro, contra a ideia de se falar em francês nas instalações da Embaixada do Brasil; nos dias seguintes, no Instituto Camões e no magnífico palacete da Fundação Gulbenkian, falou em francês. Maria Velho da Costa e Luísa Costa Gomes optaram pelo francês para que se não perdesse tempo com a tradução.

No Instituto Camões, completamente cheio, discutiu-se o facto de Cabo Verde ter aderido à francofonia. Um pouco assustada, Orlanda Amarilis, a representante das ilhas crioulas, tentou explicar que a atitude do Governo cabo-verdiano, motivada por razões de estratégia política, não coloca em causa a continuidade do português no arquipélago. Os portugueses zangaram-se -- em francês, claro.

Intervim, desajeitadamente, para dizer que aquela situação me estava a divertir. Realmente, estava a divertir-me - estava a divertir-me muito -, mas não o devia ter dito. Mário Cláudio, aborrecido, lembrou que os escritores portugueses falam sempre em francês porque sabem falar francês. A cortesia impediu-o de acrescentar que nós, africanos de língua portuguesa, não falamos outra língua por ignorância.

Calei-me logo. Acontece que Mário Cláudio tem razão. Se eu soubesse falar francês, um francês sem mácula, como o dele, escrevia os meus livros nessa língua. Os franceses ficariam encantados com tanta delicadeza, os angolanos não dariam por nada, e em Portugal – veja-se o caso da Cesária Évora, que só se tornou conhecida em terras portuguesas depois de ter sido aprovada pelos franceses -, teria certamente mais sucesso.

Os músicos convidados deviam, aliás, ter sido instruídos para cantar em francês. Melhor: para o ano, e por delicadeza para o público nativo, sugiro que a organização apenas convide os músicos lusófonos que habitualmente cantam em francês.

Suspeito, porém, que tanta delicadeza nunca venha a ter equivalência por parte do mundo francófono. Por mais que me esforce não consigo imaginar um congresso sobre literatura francófona, em Lisboa, durante o qual toda a gente fale em português. Custa-me até imaginar o mesmo congresso, em Londres, a decorrer apenas na língua inglesa.

Jorge Sampaio fala em inglês para a CNN, e os portugueses batem palmas, maravilhados: "Vejam como o nosso presidente fala bem inglês. Até parece americano!". Os sucessivos ministros dos Negócios Estrangeiros de Portugal dispensam o nosso obscuro idioma nas reuniões internacionais. Os portugueses choram de orgulho, muitíssimo deslumbrados: "Vejam como estamos europeus. Até já nem parecemos portugueses!"

Nós, em África, na nossa bruta ignorância, insistimos em falar a língua de Camões, a par com outras ainda mais selvagens e misteriosas. E é em consequência deste lamentável barbarismo que o português continua a ser falado nas instituições internacionais e nos congressos sobre lusofonia. Isso, conforme descobri agora,envergonha os portugueses. A nossa rusticidade denuncia, de alguma forma, a pretérita nesciência lusitana – no tempo em que eram colonizadores, os portugueses ainda falavam português, e não nos ensinaram a falar francês. Ao mesmo tempo, Portugal não admite que as suas antigas colónias ensaiem aproximações a outros universos linguísticos. Que Moçambique se junte à Commonwealth – apesar de, como o demonstram todos os estudos a esse respeito, o nosso idioma estar em claro crescimento naquele país – parece aos portugueses uma traição inaceitável. Que a Guiné-Bissau troque o peso pelo franco,é falta de respeito. Cabo-Verde na francofonia? Intolerável!

Lusófonos, sim, lusófonos sempre. De preferência em francês, que é uma língua mais civilizada, mas lusófonos.

Fonte

crónica transcrita da revista dominical do matutino português "Público", de 7 de Dezembro

Sobre o autor

José Eduardo Agualusa, jornalista e escritor angolano, nascido no Huambo, em 1960. Aguns livros da sua vasta obra literária são, entre outros,  Milagreiro Pessoal (2021),  Os Vivos e os Outos (2020) O Vendedor de Passados (2004), , depois de Catálogo de Sombras (contos, 2003), O Terrorista Elegante (2019, em coautoria com o moçambicano Mia Couto), O Ano em que Zumbi Tomou o Rio (2002), Estranhões e Bizarrocos (com Henrique Cayatte, 2000), Um Estranho em Goa (2000), Estação das Chuvas (1997), Nação Crioula (1998), A Feira dos Assombrados (1992), D. Nicolau Água Rosada e Outras Histórias Verdadeiras e Inverosímeis (1990) e A Conjura (1989). Publicou ainda (em 1993) uma grande reportagem sobre a comunidade africana na capital portuguesa, Lisboa Africana, em colaboração com o jornalista Fernando Semedo e a fotógrafa Elza Rocha.