A linguagem do calão - Antologia - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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A linguagem do calão

Meu amigo Albino Lapa:

 

Que pena eu tenho de não ser um escritor no género de Francis Carco só para me arvorar competente padroeiro do trabalho que me anuncia! Em verdade sou um escritor circunspecto e pompier. Há quem jure que me tem visto de noite, vestido, como um alquimista, de balandrau preto, óculos pretos, e uma lupa de bom aumento, sobre os palimpsestos da língua, à procura de termos arrevesados, visigóticos, turdetanos, com que rechear os meus romances de tamancos e crossa de junco. Ora quem anda por estas paragens alpestres do idioma ignora por força o vocábulo vitil, conciso, trocista, de emprego restrito, que se acoitou sob a capa do tuno e a esclavina de bandoleiro, e os lexicógrafos remetem, se lhes vem ao gadanho, ao cemitério da língua. Pois é ao conjunto desses termos, tidos por espúrios, bastardos e adulterinos, que chamam gíria, nome que soa a detestável galdéria.

Que pena, repito, eu tenho de ser um leigo em tal léxico para agora aqui ter voz activa e circunstanciada! Em todo o caso, eu lhe digo francamente, nada me extasia mais que uma dessas frases irreverentes condenadas pela gramática, se não pela moral, em nome dos bons costumes. Uma dessas frases que estalam e repicam como os chicotes antigos para caleças puxadas a seis cavalos, que golpeavam o ar, e curveteando em espiral de dois centros, despediam um estalido sonoro que uma nota de Caruso!

O calão, a meu ver, começou por ser uma linguagem de defesa do fraco contra o poderoso, do preso contra o carcereiro e algoz, do conspirador contra o juiz e o tirano. Que procurasse tornar-se criptográfica o mais possível, é lógico. Que acabasse por tornar-se parasita, está também na derivação das coisas humanas.

A nossa língua, porém, não chegou à fase de maturidade léxica para que medre em si semelhante superfetação à maneira dos cogumelos gigantescos, chamados vacas, que crescem no toro dos velhos castanheiros. Tal luxo é para o inglês, o francês, em que o pensamento, desde o mais imediato ao mais subtil, encontra fácil e cansada expressão. Nós, os escritores portugueses, estamos a escrever e a fazer a língua, como um amassador de pão a tender a massa para a fornada, O idioma escrito que herdámos não podia ser mais retórico e chorão, talhado para pregadores, poetas e escrivães da louvaminha. Da fala popular, a boa, a viva, quem se importava com ela? Nós, pobres obreios naturalistas, andamos a recensear esta e dar volta àquela, de forma a arranjarmos uma língua apta, como um razoável clavicórdio, a interpretar as desvairadas árias da vida. Repare como é avessa a exprimir o subjectivo, o metafísico, o matemático! Por isso, a mim, que sou um cabouqueiro da língua, que me aproveito de todos os materiais, inclusive das palavras perdidas ou desdenhadas dos puristas, graças às quais o estilo alcança carácter se não originalidade, palavras essas semelhantes às pedras que os alvenéis chamam rebos, porventura rebus, de res no ablativo, caso que poderíamos classificar de pau para toda a colher dada a sua amplitude morfológica, me acoimam de calcetar o discurso com palavras raras. Todavia, eu as ouvi, que não li nos cartapácios. E sempre que uma dessas palavras vivas, que não andam pelos cafés de Lisboa e significam movimento, acção, emoção particular, embora confinadas às portelas provinciais, aparece na minha prosa, com certeza que não representa valo que se não salte sem socorro do dicionário.

Mas onde eu vou?! O calão será pois tudo aquilo. Linguagem secreta, arbitrária e parasita. Completamente parasita, não, pois que atende a uma necessidade. Mas tenha-se como irmã enjeitada da saborosa linguagem popular que os senhores filólogos, tal aquele bom Silvestre Silvério, deixam à porta, por chula, indecente e má figura. Todavia, sem alvará destes argos, contra o respeito devido aos manes dos Vieiras e Castilhos, ela vai entrando, posto que à capucha. Entra como o João da Rua a dar o seu recado ao João de Espera em Deus. E vai anotando o que se passa na roda dos golfos, a quem servem, desde que o mundo é mundo, rasos filantes e toda a espécie de guitas. No tempo em que havia cordanta, muitos mecos que a falavam acabariam a espernear.

Adiante, Jorge Ferreira de Vasconcelos é mais denso que isto. O Garoto de Lisboa vem tauxiado desta vidraria policrómica. Ouvia-a nos meus tempos de rapaz nos tascos de camareiras ao Poço de Almas. De certo você, Albino Lapa, percorreu estas e melhores tavolagens; enfronhou-se por outros becos; adiantou o pé até as alfurjas do Alfama antes de saneadas pelos higienistas do folclore a cal e água de cheiro. Faço votos que alcance carta foral para o calão. A língua formou-se de mil maneiras, havendo-se destilado em alambiques de vária ordem. Quem diria que suis pés resultava em chispe, lux quae fugit em lusco-fusco, callis angusta em cangosta? Como acertou a dar-se o termo papo-seco aos pães pequeninos do almoço, feitos de pretensa farinha-flor? E girinho a qualquer traste bonito e agradável? E que dizer do trafulha aplicado como denominador comum, universal, ao bicho que culmina e abarrota a praça neste ano de graça?

Todos os caminhos vão dar a Roma, como todas as palavras e expressões confluem à boa economia do idioma desde que representem uma modalidade nova, aceno imprevisto de psique, reflexo inédito do espírito, cada vez mais fosfórico e exigente.

Estou convencido que o seu trabalho contribuirá para enriquecimento da locução, quer em artigo de vozes realistas, quer em falhas do vocabulário e em colorido, por isso toco o meu rouxinol como um sinaleiro ao ver-lhe adiantar o calcante:
   — Senhores glossaristas, alto aí! Passe lá vossemecê!

Amigo Velho

Aquilino Ribeiro

Fonte

Título da responsabilidade de Ciberdúvidas, para o prefácio escrito por Aquilino Ribeiro 

Sobre o autor

Aquilino Ribeiro (Sernancelhe, 1885 – Lisboa, 1963), escritor português, é considerado como um dos romancistas mais fecundos do século XX. Deixou uma vasta obra que abarca mais que um género literário, publicando com regularidade. Assim, a sua obra com contos A Filha do Jardineiro (1907) e Quando ao Gavião Cai a Pena (1935), romances e novelas Terras do Demo (1918) e Cinco Réis de Gente (1948) e obras infanto-juvenil Romance da Raposa (1924) e Arca de Noé I, II e III (1936).