A propósito das notícias sobre a greve que envolveu os trabalhadores da companhia aérea australiana Qantas, o exame atento de alguns serviços informativos em português revela que a forma de pronunciar esta denominação pode variar:
– Nas televisões portuguesas, ouve-se pronunciar “cantas”, dando ao q o valor de c na palavra canto (ver também aqui).
– No entanto, pode-se sugerir uma aproximação ao inglês, dizendo “cuantas”, como acontece, por exemplo, no Brasil, no canal de televisão da Rede Globo ou na TV Record.
Comente-se primeiro a pronunciação e a formação de Qantas em inglês, visto tratar-se de um acrónimo com certas particularidades relacionáveis com a caprichosa ortografia inglesa. Num artigo da Wikipedia em inglês, Qantas apresenta a transcrição /kwɒntəs/ – ou seja, o acrónimo soa “cuontass”, forma onde se salientam, na primeira sílaba, uma vogal entre a e o e, depois, na segunda sílaba, um s que é sibilado, e não chiado (cf. entrevista da BBC). Sobre a sua formação, diga-se que Qantas tem origem na expressão «Queensland and Northern Territory Aerial Services», cuja sigla passou a acrónimo ao ser interpretada como palavra com a sua própria estrutura silábica.
Neste contexto, seria de esperar que em inglês o q fosse lido como consoante oclusiva velar [k], atendendo à forma «Al Qaeda», conforme aponta a transcrição /ælˈkaɪdə/ (cf. Wikipedia em inglês). Todavia, não é isso que acontece: o q do acrónimo é lido como representação de uma consoante com uma articulação labiovelar, levando o [k] de Qantas a ser pronunciado aproximadamente como [kw].
Reconheça-se que, à semelhança da ortografia portuguesa e fora do âmbito, por exemplo, das transcrições ou transliterações do árabe, é insólito em inglês um q seguido de uma letra vocálica que não u; e o esperável é a esta letra corresponder uma semivogal ou não caber nenhum segmento, assim se compreendendo o contraste entre quip («piada») [kwip] e quay («cais») [ki:] (cf. Oxford Portuguese Dictionary). Sem acesso a elementos que me justifiquem a articulação do acrónimo como “cuontass”, sugiro para já que se pretendeu tornar mais expressivo o q, de modo a vincar melhor a sua função de inicial de Queensland (território do Norte da Austrália), que tem [kw] audível. Não obstante, é de assinalar que a lógica de artifícios de leitura como este, tão comuns em inglês, se insinua paulatinamente na vida institucional e social de outras línguas que, como o português, também empregam o alfabeto latino.
Deste modo, voltando ao uso de Qantas em português, a variante empregada pelos jornalistas brasileiros afigura-se menos devedora da pronunciação inglesa do que da ortografia associada. Com efeito, na forma usada nos noticiários da TV Globo ou da TV Record, a sequência “an” é proferida como “ã” (símbolo fonético [ɐ̃]), à portuguesa. Contudo, a leitura de Qantas como “cuantas” mantém o referido artifício do acrónimo original, traduzindo-se numa liberdade até há tempos pouco ou nada característica dos padrões de correspondências entre grafia-fonia do português. Pode-se argumentar que, sendo o acrónimo de origem inglesa, o aportuguesamento deve ter em conta a pronunciação original. Mas então que fazer, por exemplo, com UNESCO (United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization), acrónimo que hoje é, como se costuma dizer, “lido como se escreve”, já que não parece que haver ninguém a dizer “iunesscow” à inglesa?
Sendo assim, parece-me que na pronunciação de Qantas em língua portuguesa se chega a um certo impasse no que a decisões normativas diz respeito, porque há um dado novo (ou talvez não tão novo assim: a companhia foi criada nos anos 30 do século passado) na esfera das relações grafia-fonia.
Por um lado, a solução encontrada em Portugal é a mais “literal” no sentido em que se dá ao q de Qantas o valor que normalmente lhe está associado — o mesmo de c antes de a ou o; a semivogal [w] não é pronunciada, porque está representada pela letra correspondente, u, embora a sequência gráfica não deixe de ser excepcional, pela ausência dessa letra vocálica, elemento indissociável da activação ortográfica do q.
Por outro lado, no Brasil, chegou-se a um compromisso entre os critérios da ortografia portuguesa e a pronunciação de origem: a semivogal é articulada, imitando o inglês, mas a sequência de vogal e consoante nasal [ɒn] é substituída por [ã], a par de outras adaptações. No fundo, esta pronunciação tem a sua legitimidade: começa por adotar, de modo inovador, o engenhoso tratamento inglês da letra q no acrónimo em apreço, para depois o afeiçoar aos padrões fonológicos do português.