Casos sérios - Diversidades - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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Casos sérios

«Procurar maior rigor na expressão escrita e falada em português, sobretudo nos textos jornalísticos e noutros que, não sendo estritamente jornalísticos, são transmitidos pelos media (caso das legendas ou da locução de filmes, séries e documentários), seria um serviço público.»

Quando comento o uso a meu ver deficiente da língua portuguesa (e também de vocábulos ou expressões estrangeiras) nos meios de comunicação social, a que por brevidade chamo «media», não me sinto depositário da verdade ou da norma. Creio todavia que os jornalistas, ou outras pessoas com acesso privilegiado à Imprensa e ao audiovisual, têm especial responsabilidade nesse campo, pois estão em condições de influenciar, para o melhor e para o pior, milhões de pessoas, ou de desinformá-las, fornecendo dados erróneos ou confusos.

O que me surpreende é a aparente indiferença geral perante estes assuntos, sobretudo por parte de pessoas muito qualificadas (até licenciadas em Filologia ou docentes de Línguas e Literaturas) que escrevem e falam, têm colunas e tribunas nos «media». Procurar maior rigor na expressão escrita e falada em português, sobretudo nos textos jornalísticos e noutros que, não sendo estritamente jornalísticos, são transmitidos pelos «media» (caso das legendas ou da locução de filmes, séries e documentários), seria um serviço público. Sem já falar na confusão do «há» com o «à», em que também neste Cartaz se incorreu duas vezes e ainda hoje vi num jornal regional, aliás dos melhores que temos (qualquer dia os doutores mudam a gramática para que os ignorantes e os distraídos passem a ter razão), darei exemplos para ajudar a perceber a que fenómenos me refiro.

«O que fizermos tem de ser feito com alguma secrecidade» (RTP-1, legenda, 4/8/00). Sou eu que não conheço a palavra?

«(...) as civilizações desaparecidas ou em vias de extensão (...)» (RTP-2, locução de «Euronews», 9/5/00).

«Por favor, mantenham-se na fila até puderem avançar.» (TVI, legenda de filme, Abril de 2000).

«Muita gente aguarda pela equipa» (RTP-1, 14/5/00, fala do jornalista). Não bastaria «aguarda a equipa»?

«(...) que levou Fujimori a resignar» (TVI, noticiário, 18/9/00). Não seria «a demitir-se»?

«O PS, que (...) sustenta o Governo, apoia o Governo (...)» (dirigente do PS, TVI, 26/7/00).

«Sustentar», na acepção que se depreende da sequência, seria o verbo ideal? O pior foi quando outra personalidade socialista disse na Televisão: «O PS, partido que suporta o Governo (...)», clara influência do inglês «support». «Paguei-lhe cinco tequilhas» (TVI, legenda, 22/7/00). Este erro, muito generalizado, tem origem na crença de que em espanhol se escreve «tequilla» (como surge no DN, 26/3/01) e não «tequila».

«D. Policarpo» e «D. Saraiva Martins» (vários jornais; alguém tinha ouvido chamar «D. Cerejeira» ou «D. Ribeiro» aos cardeais anteriores?). O «D.» implica que se siga o nome próprio, não se antepõe directamente ao apelido; tal como não se diz D. Henriques, mas D. Afonso Henriques (ou D. Afonso).

«De acordo com as Nações Unidas já terão morrido mais de 80 pessoas» (RTP-1, noticiário, 20/5/00).

«De acordo com» indica concordância. A ONU não aprovou essas mortes. Parece é que o «according to» anda a ser traduzido por «de acordo com» e não por «segundo». Quem sabe hoje que «segundo» não é apenas um numeral ordinal? Lembram-se de O Mundo Segundo Garp, de John Irving, e de como se chamava em inglês.

«Jily Povetsky», em vez de Gilles Lipovetsky («People+Arts», legenda de «Torre de Papel», 25/3/01).

«Nabakov. Como uma personagem do Nabakov.» (SIC, legenda, 10/7/00). Quem foi o «naba» que escreveu isto?

«(...) na intercepção de três rios.» («People+Arts», 28/1/01, legenda de documentário). Não seria melhor «intersecção»?

«(...) eram consumados pelas chamas» (locução, canal História, 7/11/00)

«(...) das coisas que aparentemente pareciam incuráveis» (idem, 9/11/00)

«Por que haveriam tantas raparigas bonitas no meu clube?» («People+Arts», legenda, 11/11/00)

«Mas: usariam-na?» (canal História, locução, 5/11/00) «(...) controlam a Palestina desde o andar cimeiro do hotel King David» (idem, 13/1/01). Desde quando?

Bem, vou-me embora (e não «vou embora», como cada vez se ouve mais, por influência brasileira). Deixo ainda uma frase não televisiva: «E se apanhar-mos o autocarro...» (DN, «Terra do Nunca», 25/3/01). Esta foi-me mostrada por uma criança, o que mostra que nem tudo está perdido. Não acho que estejam a assassinar o português, mas que lhe andam a dar umas facadas, lá isso andam.

 

Fonte

*Publicado no jornal "Expresso", dia 31 de Março de 2001

Sobre o autor

Francisco Belard (Beja, 1946), licenciado em História pela Universidade de Lisboa, é professor na Escola Superior de Jornalismo de Lisboa. A par dessa função, é ainda jornalista dos jornais diários República, A Luta, Diário de Notícias, do Semanário Expresso e colaborador na revista Ler.