A Vida das Palavras - Diversidades - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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A Vida das Palavras

"Beijing??... Então esta cidade não tem nome em português?... Fiquei profundamente desiludido e revoltado com este erro. Se nem a imprensa escrita utiliza e/ou fomenta o português, nesta altura da 'rede' em que desapareceram cedilhas e acentos, onde será que chegaremos?..." 

O autor destas linhas, José Gonçalves, foi um dos vários leitores do PÚBLICO que, nas últimas semanas, manifestaram ao provedor a sua perplexidade (ou discordância) pelo facto de, neste jornal, se chamar Beijing à capital da China - e muitas vezes isso se fez recentemente, no contexto da polémica sino-americana suscitada pelo caso do avião-espião. Um outro leitor, Pedro Matos, interpelava assim: "Já agora, sempre gostava de saber uma, e uma só, razão por que usam Beijing. É por não saberem? É porque soa melhor? Dá um ar mais CableNewsNetwork? É que, sinceramente, não se percebe tamanha parvoíce". 

Compreendem-se as interrogações, se virmos, como vemos, que praticamente mais ninguém no panorama da Comunicação Social portuguesa, com excepção do PÚBLICO, usa este termo: todos preferem a designação "Pequim", a que estávamos habituados. Mas convém, desde já, fazer duas precisões: a primeira é que neste jornal já se escreve Beijing há muito tempo (ter-se-á notado mais agora por causa da profusão de notícias em torno da capital chinesa); a segunda é que dificilmente se poderia considerar estarmos perante um erro, porventura imputável a distracção ou a ignorância generalizada, uma vez que a mesma grafia é usada em tantos textos de tão variados autores. 

De facto, não se trata de um erro. Trata-se de uma opção, certamente discutível e controversa, mas não de um erro. A escolha está desenvolvidamente explicada no Livro de Estilo do PÚBLICO. Aí se diz que o jornal, na escrita de nomes e topónimos chineses, decidiu adoptar o "pinyin", ou seja, o "chinês alfabetizado, criado pelos próprios chineses e que entrou oficialmente em vigor em todos os contactos com o exterior já em 1979". Mais se explica que o "pinyin" nasceu pelo facto de "os complexos caracteres chineses não [obedecerem] a uma lógica alfabética, como nas línguas ocidentais, mas a uma escrita ideográfica" e, assim, ser necessário "arranjar uma fórmula de transcrição alfabética da língua chinesa". Várias fórmulas foram utilizadas ao longo dos séculos até se chegar ao "pinyin", formalmente adoptado em 1979 pelo Estado chinês e reconhecido pela organização de normalização da ONU. Ora, de acordo com o "pinyin", "o nome correcto da capital chinesa, em qualquer língua que use o alfabeto romano, é Beijing" - conclui o Livro de Estilo, informando ainda que opção idêntica à do PÚBLICO "tem vindo a ser adoptada pelos órgãos de Comunicação Social em todo o mundo", com o "New York Times" na dianteira. Aqui é que a porca torce o rabo... De facto, o "New York Times" também escreve "Beijing". E o "Washington Post". E a CNN. E a "Time". E não só os jornais e revistas americanos; também os ingleses, o "Times", o "The Guardian"... Mas se a nova grafia foi adoptada pela generalidade da imprensa anglo-saxónica, já não o foi, por exemplo, pela francesa, pela espanhola ou pela... portuguesa. As que nos são geograficamente mais próximas, afinal, e onde toda a gente continua a escrever "Pequim" ou "Pekin". Com excepção do PÚBLICO. 

Que fazer? Manter a opção reflectidamente tomada, esperando que a pouco e pouco a sigam os restantes - como já acontece em parte do mundo -, mas correndo o risco de ficar sozinho, a insistir no que alguns considerarão mera bizarria ou vaidade de "jornal elitista"? Ou, pelo contrário, fazer marcha atrás, desistindo do que parece ser uma escolha legítima e bem fundamentada, só porque a maioria, entre nós, continua atreita à grafia tradicional de "Pequim"? 

Não é uma questão fácil, pois envolve prós e contras. Se alguém quiser dar a sua opinião, faça o favor... Um aspecto convém não esquecer: importa que a eficácia da comunicação não saia prejudicada. O leitor Pedro Matos tem dúvidas a esse respeito: "É preciso fazer uma sondagem para saber quantos, em Portugal, sabem onde fica 'Beijing'?" Pela minha parte, contudo, arriscaria dizer que a generalidade dos leitores do PÚBLICO, quanto mais não seja pela habituação, sabem perfeitamente que se fala da capital da China (ex-Pequim) quando se fala de Beijing. Podem não gostar - mas sabem. 

Isto da língua e das palavras é coisa muito mutável. Toda a língua é como um organismo vivo que nasce, cresce, se desenvolve neste e naquele sentido, eventualmente até morre. Quantas palavras já desapareceram, quantas novas vão entrando no nosso léxico habitual, seja por necessidade de nomear novas realidades, seja por permeabilidade (escusada numas vezes, incontornável noutras) face a estrangeirismos! E é um processo em contínuo movimento. 

Tal não significa, porém, que não deva haver - e então nos jornais, responsáveis por tanto do que por aí se diz e escreve - algum cuidado em preservar e valorizar o património riquíssimo da língua portuguesa. Ora, se há palavras adequadas para certos casos, porquê importar termos alheios ou inventar formulações estranhas? 

Veja-se a travessia sobre o Douro, destinada exclusivamente a peões, que o Porto se prepara para construir junto à ponte de D. Luís. É, ao que tem dito o PÚBLICO, uma ponte "pedonal". Mas procura-se em tudo quanto seja dicionário, por mais actualizado, e nada de "pedonal". E nem sequer o Livro de Estilo nos vale, como valeu com Beijing... 

O leitor António Carvalho fez o seu reparo sobre esta matéria, pedindo "mais respeito pela língua portuguesa" e contestando "a invenção de novas palavras que, embora correctas nas regras das derivações do latim, têm já antecessores perfeitamente usuais e correctos". No caso, lembra, há o termo "pedestre", significando "que é percorrido a pé". E "ponte para peões" também não vai mal. Agora "pedonal"... 

Claro que, generalizando-se o uso do termo, daqui a uns anos ele pode bem acabar por entrar na língua. Exemplos não faltam. Então não nos fartámos de protestar contra o estrangeirismo "implementar", tão frequente na boca de políticos e empresários, e constatamos agora que as versões mais recentes dos nossos dicionários já o adoptaram como palavra portuguesa?... Até por isso, porque é tão intensa a pressão de termos importados e porque os neologismos não hão-de parar, vale a pena algum esforço de atenção. Quando temos na nossa língua as palavras adequadas, e tantas vezes até tão bonitas, por que não preferi-las? 

Em síntese 

Beijing - O "novo" nome da capital chinesa é uma opção e não um erro de português 

Língua - Valorizar o património também passa por usar as bonitas palavras que temos

Fonte

No diário português "Público" de 22 de Abril de 2001

Sobre o autor

Joaquim Fidalgo (Vila Nova de Gaia – 1954), licenciou-se em Filologia Germânica pela Universidade do Porto e é jornalista profissional desde 1980, tendo antes lecionado nos ensinos preparatório e secundário. Foi provedor do leitor do Público de 1999 a 2001.