Os Descobrimentos e eu ... (5) - Diversidades - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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Os Descobrimentos e eu ... (5)

Volto a repetir que devo muito à minha mãe como uma educadora com visão e capacidade de planeamento e execução. Ela tinha muita consciência da importância de contactos sociais. Além de se dar bem com os vizinhos, ela tinha-se apercebido bem da mentalidade colonial de hipocrisia e compadrio para avançar na vida. Ela serviu-se em larga medida de mim para conseguir os seus objectivos sociais e económicos. O meu irmão mais velho não correspondia às expectativas da minha mãe nesse sentido.

Há uns anos, pouco antes de a minha mãe morrer, com 68 anos de idade, eu lembrava-lhe dum acontecimento que se passou quando eu tinha apenas cinco anos de idade. Ela tentou controlar-se mas desatou a chorar. Fora assim:

Ela costumava dar-nos a mim e ao meu irmão uma rupia (equivalente a seis escudos) a cada um de nós para gastarmos na feira por ocasião da festa anual da nossa igreja. Mas nesse ano, uns dias antes da festa, a minha mãe fora fazer compras na feira semanal de Mapuça. Roubaram-lhe a carteira com todo o dinheiro que o meu pai emigrante lhe enviara de Bombaim para aquele mês.

Ela já não tinha nada para nos dar para a festa. Eu tinha observado a ela a chorar perante o oratório da família durante a reza do terço. Ela fazia o possível para esconder as suas preocupações e proteger-nos dos contratempos.

Foi assim nessa ocasião. Ela pediu algum dinheiro emprestado à vizinha para nos dar de prenda da festa. Só que, enquanto o meu irmão teve o seu comportamento normal e gastou tudo em gelados e umas outras bugigangas, eu guardei a moeda e devolvi-a à minha mãe quando voltávamos da Igreja.

Eu vi-a confusa com o meu gesto, mas tentei convencê-la que eu não precisava de comprar nada. Ela compreendeu o que mais eu queria dizer com aquela minha explicação. Foi uma atenção da minha parte que ela jamais esqueceu, e ficou convencida que podia contar comigo para resolver algumas das suas preocupações da mãe.

Como já contei anteriormente, a formação religiosa era muito cara para a minha mãe. Para além das aulas de «doutrina» de que ela tomava conta todas as tardes, e as aulas dominicais na paróquia, a minha mãe soube aproveitar do zelo do capelão, Padre Patrício. A capela de Nossa Senhora do Sagrado Coração de Jesus não era do meu bairro, mas ficava mais perto do que a capela de S. Sebastião do meu bairro. O campo de futebol da aldeia e a estrada municipal separavam a capela da minha casa.

Para lá me mandava a minha mãe todas as manhãs para «ajudar» a missa das seis. Tive que aprender de cor todas aquelas respostas em latim. Estava convencido que devia ser a língua que Deus melhor compreendia nessa altura. A minha altura não dava também para chegar facilmente ao «missal» quando era para o levar do lado de epístola para o lado do evangelho.

E eu tinha que aguentar beliscões da estante para não deixar cair o «missal» que era muito pesado para mim.

A capacidade organizadora do capelão conseguira criar uma mini-paróquia muito activa. Ele soube cativar os adultos manifestando enorme interesse nos seus filhos. A liturgia dominical, e mesmo diária, tornou-se uma feira de vaidades para os familiares que queriam ver os seus filhos com vestes litúrgicas de meninos de coro.

Havia entre esses uns meninos de famílias importantes do bairro. Eles não perdiam as ocasiões de dar ares de serem filhos de algo. 

Conversavam muito entre si com «sim pá» e «não pá», faziam conluios para reservarem para si as funções litúrgicas de maior destaque, e guardavam para si as batinas vermelhas. Eram das famílias Silva, Paes e Gama, que constituíam a nobreza rural indo-portuguesa de Moirá. Vi-as no esplendor da sua glória.

O «regedor» (oficial responsável pela ordem pública) da aldeia era Cirilo da Silva. Os Paes contavam com um padre encarregado da disciplina no seminário menor da arquidiocese. Era da mesma família o único «dôtôr» (médico) residente da aldeia. Uma outra família Paes, com traços visíveis de mestiçagem, tinha filhas bonitas que atraiam visitas frequentes dos «paclé» (portugueses). O pai das raparigas, Antu (António) Paes, era um empregado da Fazenda (Finanças) em Panjim. José da Gama era bibliotecário da câmara municipal do concelho em Mapuçá.

As três famílias formavam uma «troika» que dominava a vida da aldeia com as suas ligações com a administração portuguesa. Eram por isso respeitados (temidos) na aldeia. Quem os contradissesse corria risco de duras represálias. Eram donos de palacetes, com quintas por tudo que é sítio (muitas delas apropriadas dos pobres da aldeia sem meios de pagar os impostos), com «poské» e «poskim» (bastardos considerados adoptivos) para os servir como escravos, sem direitos de casamento ou de fazerem uma vida independente.

Não é de surpreender que houvesse muita raiva contida contra esse tipo de regime social, e que muita gente goesa desejasse o seu fim e uma verdadeira «libertação». Eu já tinha ouvido esta análise na minha casa, mas era feita entre dentes, e aconselhava-se uma prudência pragmática.

Um filho da família Gama era também um ajudante da missa.

Chamava-se «Piki» (pequeno). Ele era muito clarinho e ouvi pessoas na capela a verem nele um «anjinho». Os santos e anjos tinham que ser brancos nessa altura. O Piki foi também meu colega do curso primário. A dupla ligação igreja-escola fez de nós bons companheiros e ganhou para mim a aceitação da família Gama.

Os pais do Piki já admiravam a minha esperteza e o meu bom comportamento, e atribuiam-nos à capacidade da minha mãe em combinar a sua faina de mulher relativamente pobre e muito trabalhadora com a educação cuidada dos seus filhos. Quando o Piki entrou no seminário no fim do curso primário, eu fui para lá também. É uma estória para contar, mas para além de outras motivações, eu tinha descoberto um caminho de ascensão social. E a minha mãe já conseguia resolver melhor as suas preocupações com a assistência dos Gamas e da troika aldeana.

Sobre o autor

Teotónio R. de Souza (1947-2019). Historiador nascido em Goa, ex-sacerdote católico, foi fundador e diretor do Centro Xavier de Pesquisas Históricas. Era professor catedrático na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, no departamento de História. Foi diretor do jornal da Associação dos Cientistas Sociais do Espaço Lusófono e diretor-adjunto da revista Fluxos e Riscos- Revista de Estudos Sociais.