Carta ao amigo Brito * - Antologia - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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Carta ao amigo Brito *
Paris, 6 de Junho de 1790



Lembras-me, amigo Brito, quando a pluma
Para escrever, magnânimo, meneio.
Ama o meu Brito a lusitana língua,
Pura como ele, enérgica, abastada,
Estreme de bastardo francesismo
E que a joio não trave 2 de enxacoco 3;
E quando lê, rejeita a frase espúria
Que com senão mal-assombrado afeia
Asseada escritura e ideia nobre,
De legítimos, lusos termos digna;
Mas discreto critica e faz justiça,
Sem torpe inveja, sem paixão obscura.
Que, amigo, muitos mordem nos bons versos
Do fecundo Garção 4, Dinis 5 prestante,
Sem de Horácio ter lido um só conselho,
Sem que acaso divino entusiasmo
Nunca na alma encharcada lhes fervesse.
Muitos querem, vaidosos, dar penada
Na língua portuguesa, que as correntes
Das cristalinas águas não gostaram,
Vertentes dos volumes caudalosos
De Barros, Brito, Sousa e de Lucena,
De Ferreira e de Camões. Fartura arrotam
De português, porque inda hoje remoem
As mesquinhas migalhas, que das bocas
De amas vilãs, de brejeiras lacaios
Na recente memória lhes caíram.
Afeitos a tão magra, oca pitança,
Se amuam contra as raras iguarias
Com que os brindam os Clássicos bizarros
Em suas mesas guapas e opulentas.
Ó Clássicos do nosso augusto sec'lo,
Que sempre fostes o patente molde
De elegante escritura genuína,
Oh, quanto deveis hoje mais que nunca
Ser o que são bandeiras nas batalhas!
Quando vai roto o exército, e esgarradas
C'o medo e fuga as marciais fileiras,
Longe da rota 6  7, o general previsto
Manda gravar em sítio bem disposto
Os contos 8 das bandeiras. Troam logo
Os rufos do tambor eco-batente;
Voltam a vista aos vagos fugitivos
Aonde os rufos clamam; vêm os ares
Solta as cores dos pendões jurados:
Correm, vão-se apanhar em torno deles,
E cobrando, em vê-los novos brios,
Rugem, leões; as brigas já re-pedem,
Caem na hostil coorte, rompem, vencem.
A vista das bandeiras em triunfo
Lhes transmudou a fuga. Nós desta arte
Usar convém, na fuga e desbarato
Em que nos poso exército confuso
Da pujante ignorância, a qual cercou-nos
E de vencida nos levou, no tempo
Do nosso mal-sofrido cativeiro:
Cumpre ao pé dos pendões enfileirar-nos,
Entrarmos na refrega c'os cediços
Pedantes 9, c'os casquilhas da moderna 10,
Que nos mofam, nos seguem, nos perseguem,
Quais bandos de pigmeus, e vem armados
Cada um como um Sansão, como um Alcides,
Valentes como impávidos Quixotes,
Os da corja académico-tarouca 11
Com bexigas e estalos farfalhudos,
E os mais com pelas de francês conducta,
De aferes, rango, massacrar, ressortes,
Egídio, populácea e iguais remendos
De mal alinhavada francesia.
Não que à língua francesa eu ódio tenha,
Que absurdo em mim. Ninguém confessa
Mais sincero o valor de seus bons livros,
De todo o bom saber patentes cofres,
De polidez e eloquência ornados.
Bastara em seu louvor, se o carecera,
Ser bem vista e prezada em toda a Europa,
Das cortes e dos sábios no universo,
Conter em si, ou próprio ou traduzido,
Quanto Minerva pôs no peito humano,
As fadigas das artes, das ciências
E os enfeitos do florido discurso.
Mas, como fora escarnecido em França
O que empreendesse impar de frases lusas
Um discurso francês em prosa ou verso,
Assim pede entre nós ser apupado
O tareco doutor, que à pura força
Quer atochar de termos bordalengos 12
O nativo desdémda nossa fala.
Se temos de pedir a alguma bolsa
Termos que nos faleçam, seja à bolsa
De nossa mãe latina, que já muito
Nos acudiu em pressas muito urgentes,
Quando em bronca e escassez já laborámos
Ao sairmos das mãos da bruta gente. 13

1 Esta carta de Filinto Elísio é uma espécie de Arte Poética, em que o poeta foragido, ao correr da pena, sem ordem aparente, vai dando as suas opiniões sobre a imitação dos clássicos e a mania do francesismo. Tudo isto é exposto numa linguagem viva, truculenta, portuguesa de lei. A carta é dirigida a um dos seus amigos e protectores, Francisco José Maria de Brito, culto secretário da legação portuguesa na Holanda. Filinto esteve nesse país de 1792 a 1797, atraído pelo ministro português António de Araújo de Azevedo, coleccionador de livros raros e admirador de Horácio. (Rodrigues Lapa)
2 Tenha o amargor.
3
Mistura de uma língua com outra.
4
António Correia de Garção, árcade autor de uma vasta obra em verso, em prosa e em texto dramático.
5 António Dinis da Cruz e Silva, um dos fundadores da Arcádia e autor de Hissope.
6
Derrota.
7
Dispersas.
8
Hastes, paus.
9
Partidários do velho gosto barroco, contra os quais se ergurera a Arcádia.
10
Alusão aos partidários da escola francesa.
11
Designação curiosa da literatura culteranista, que se caracterizou pela instituição das academias, que cultivavam o barroco.
12
Estrangeirismos.
13
Os godos e os mouros.

Sobre o autor

Filinto Elísio (Lisboa, 1734 – Paris, 1819), foi um poeta, tradutor e sacerdote. Enquanto sacerdote foi influenciado pelo arcadismo e pelo iluminismo, o que o levou a ser denunciado à Inquisição. Nestas circunstâncias, viu-se obrigado a fugir para Paris, e foi aí que escreveu grande parte da sua poesia, que só seria publicada após a sua morte em Obras Completas, (1817-1819).