«O nobre idioma, o alti-sonante português» - Antologia - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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«O nobre idioma, o alti-sonante português»

A língua está a pique de perder-se, degenerando em garabulha por arte de franchinotes. Já não é sòmente o vocábulo de boa casta que é renegado pelo barbarismo, é a própria plástica, a mesma sintaxe, de construção robusta, que se vai deformando com o arrocho do justilho, efeminando-se com embelecos e postiços.

E assim abastardam e envilecem o nobre idioma, o alti-sonante português, que rompeu sonoro através do troar das buzinas romanas; que retumbou vencendo o clangor das tubas sarracenas; que ecoou em África, sufocando o estrugido das parapandas negras, dominou o ribombo dos trovões e o uivo dos ventos nos mares, quando ordenava nas galés atrevidas; que se lançou por Ásia dentro e veio cantar nas tabas americanas, regressando ao ninho paterno cheio de notícias de heroísmos.

Ao reentrar na Pátria, como as pedras que se moveram ao som da lira de Anfião e, sotopondo-se por si mesmas umas às outras, formaram as muralhas altas de Tebas, obedecendo à «fúria grande e sonorosa» do épico, ajustou-se em heróicos, formando a torre inexpugnável de Os Lusíadas, onde há-de viver eterno o génio robustíssimo da raça que o criou.

É tal idioma, cujos termos nasceram em campos de batalhas, nos castelos alcandorados e nas alcáçovas das fronteiras, nas húmildes póvoas dos vilões e nos claustros ascídios, nas estalagens onde pousavam trovadores e dormiam espadachins e goliardos; nos palos reais e nas galés que se faziam aos mares misteriosos; nas recâmaras das donas e nas arribanas dos pastores; no púlpito das igrejas e nas tribunas parlamentares; na arte e na sciência; no comércio e na indústria; na lezíria, entre o gado, nos trigais e nos olivedos; nas festas pagãs das colheitas, nas feiras sempre turbulentas, no inverno ao calor do lume, no soalheiro estival e entre a dorna e o lagar no Outono; sentimental pelo influxo da saudade, flor da raça; é tal idioma tradicional , herança que nos foi legada pelos que nos deram a Pátria, o Deus do nosso altar, os costumes, a Lei e a sua própria glória, que está em perigo, não por desestima do povo, mas por traição dos vélites da pena, desses mesmos que o deviam guardar com avareza e defender com brio.

E porque assim o desconjuntam? Porque o acham, dizem, por demais inteiriço e ríspido, sem flexibilidade, duro. Então desarticulam-no e arrancam-lhe do corpo hercúleo as peças da armadura que o reveste desde o tempo em que, partindo dos arrais galizianos, entrou a terra lusitana, forte e altivo, nas mesnadas dos ricos-homens; e se ainda o vestissem compostamente, com trajo de hoje, nada se lhes diria; mas atafulam-no como um pintalegrete e trazem-no por aí ciciando em voz de eunuco e caminhando aos pinchos como um pisa-flores.

O mal não é novo, alegam os galiparlas. Já Duarte Nunes Leão o denunciava no começo do século XVII, mostrando acareetos do francês no curso do vernáculo.

Tais expressões, porém, transitam como folhas que descem o rio ao som das águas, e passam e vão-se ao mar; mas se as deixamos rebalsarem-se, a água toda vicia-se, e turva-se o que era límpido; o que era fluente remora em pântano; fica estagnado em putrilagem o que, antes, docemente corria regando terras, reflectindo arvoredo, céus e montes, movendo azenhas e abeberando povos e rebanhos. Insistem ainda os taralhões, argumentando com Vítor Hugo: «Une langue ne se fixe pas. L’esprit humain est toujours en marche, ou si l’on veut, en mouvement, et les langues avec lui.»

Sim, a língua não se fixa; evolve, mas sempre à custa da seiva que recebe das raízes e dos benefícios que tira do ambiente. Assim a árvore perde as folhas, abrolha de novo, floresce, frutifica, esmarre, para reverdecer mais bela. Mas como a árvore morre se a infestam parasitas, assim perece a língua se a invadem exotismos.

Que transferida de um para outro clima a língua se modifica , não há negar. O idioma falado no Brasil é o mesmo que soa em Portugal, mas — e mantenho a analogia — com o nosso sol a árvore tornou-se mais verde, mais viçosa; vieram-lhe as flores mais coradas e os frutos mais doces e de mais aroma; e, como se deu bem na terra, desenvolveu-se prodigiosamente, abrindo frondosa copa e enchendo-se de cantos.

Mas a seiva que lhe corre no âmago é a mesma que circula nas veias da árvore veneranda, em cujas raízes estão sentados os quatro evangelistas: Camões, Vieira, Bernardes e Camilo.

Fonte

In Paladinos da Linguagem, vol. II, Paris-Lisboa, Aillaud e Bertrand, 1922, pp. 155-159 (mantém-se a ortografia da fonte).

Sobre o autor

Henrique Maximiano Coelho Neto (Caxias, 1864 – Rio de Janeiro, 1934) foi um escritor, político e professor brasileiro. Foi considerado o “Príncipe dos Prosadores Brasileiros”, mas, desde o aparecimento dos modernistas, este caiu um pouco no esquecimento. Das suas obras fazem parte, entre outras, as seguintes: Rei Negro: Romance Bárbaro (1914), Fogo de Vista (1923) e Fogo Fátuo (1930).