Os Descobrimentos e eu... (3) - Diversidades - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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Os Descobrimentos e eu... (3)

A presença portuguesa não deixou somente marcas léxicas em Goa. Ficaram topónimos, embora raros. O bairro da aldeia de Moirá onde fica situada a minha casa ancestral é Povoação. Não pude ainda descobrir desde quando começou-se a utilizar esta designação. O bairro também retém a designação vernácula "gão", o que significa uma aldeia.
Provavelmente assim se explica a tradição que lhe aponta como o primeiro povoado da aldeia, que depois se estendeu para novos bairros que se foram criando. O bairro mais recente e criado nos inícios deste século é Novo Portugal, e assim se mantém ainda hoje, embora na versão vernácula de Novem Portugal.

 

A educação cristã começou muito cedo na minha família, e isso foi devido à influência da minha mãe. Ela era natural de S. Matias da província de Tiswadi, ou Ilhas de Goa. Era um caso raro nessa altura as pessoas se casarem fora da sua província.
A dificuldade de transportes e comunicações não dava para isso. E nas ilhas, os casamentos limitavam-se para dentro da mesma ilha. Salvaguradando as exigências das castas, na ilha eram todos familiares. A minha mãe era da ilha de Divar, onde havia duas paróquias importantes. As pessoas da paróquia de S. Matias (freguesia de Malar) casavam-se com as pessoas da paróquia de N. Senhora de Piedade (freguesia de Pidedade). A minha mãe chegou a casar-se em Moirá, porque lá tinha casado uma prima dela, e a prima sentia-se isolada e procurava companhia.

A aldeia Divar, na vizinhança da velha capital do Estado da Índia, era um centro importante de peregrinações para os hindus.
Tinha um belo templo dedicado ao deus Saptakoteshwar, a divindade oficial dos Kadambas, que reinaram em Goa durante mais tempo que os Portugueses. O templo tinha sido destruído mais de uma vez pelos invasores muçulmanos de Nova Deli e pelos Bahamanis antes da chegada dos Portugueses e antes da sua campanha de conversões para o cristianismo. Afonso de Albuquerque mandara erguer no mesmo sítio, no cume do oiteiro, uma capela que foi dedicada a Nossa Senhora de Candelaria. Conta-se que Afonso de Albuquerque morreu com os olhos fitos nesta capela, quando ele entrou pela última vez, e quase moribundo na barra do rio Mandovi em 1515.

Diga-se ainda de Divar que ela era um centro importante de lusofonia em Goa, e vários filhos dessa ilha brilharam em Portugal. Os Gonçalves, com os seus vários avatares, como Cunha Gonçalves, Gonçalves Pereira, ocuparam mais de uma vez a presidência da Relação de Lisboa. Júlio Gonçalves foi Secretário Geral da Sociedade de Geografia de Lisboa, e conhecemos melhor o André Gonçalves Pereira como Ministro dos Negócios Estrangeiros deste país há poucos anos. E não resisto a tentação de revelar que o ilustre coordenador desta página de Ciberdúvidas, José Mário Costa, entrou na árvore genealógica dessa ilustre família goesa através da sua esposa Rita.

A minha mãe era uma senhora muito piedosa, e ao contrário do que acontecia no ambiente familiar em que ela estava casada, ela decidiu educar os seus filhos à sua maneira. Apesar da dura labuta do dia, o meu irmão mais velho e eu tinhamos que parar os nossos jogos fora da casa e dar entrada no balcão da casa logo que soasse o sino de Angelus às seis e meia da tarde. É a hora do pôr-do-sol em Goa. A minha mãe ficava à nossa espera para nos ensinar o catecismo. Começava-se com Santa Kursachê Kurven ou Pelo Sinal da Santa Cruz, e só se acabava uma boa meia hora mais tarde com uma exortação para nos portarmos bem. ela corrigia o que ela julgava ser maneiras de meninos malcriados. E um refrão que nunca faltava no fim: era muito importante para o nosso futuro sermos bons alunos na escola, se não escolhessemos ser gadekar (carroceiros)! Eu já tinha pouca paciência para esse refrão e procurava irritar a minha mãe tapando os meus ouvidos com dedos. Foi talvez por isso mesmo que o refrão nunca me saiu dos ouvidos e contribuiu muito para a minha formação.

A dose diária da formação cristã não parava com a lição de catecismo e moral. Seguia a purificação corporal, indispensável após as corridas que nós miúdos fazíamos, sempre descalços, nas ruas poeirentas e no ambiente muito natural das aldeias goesas. O que me mais apetecia logo depois do banho era comer. Mas não havia comida para ninguém sem que primeiro se recitasse o terço perante o orátorio da casa. Esse oratório tinha um crucifixo e uma meia dúzia de santos e santas. Tive sérias dificuldades em responder uma vez ao meu mestre de «doutrina» ( dotirn em Concani) na igreja da aldeia. Ele queria saber quantos eram os deuses, para chegar a conclusão que existe um só Deus. Eu não parava de insistir que havia mais no oratório da minha casa. Numa outra altura, o mesmo mestre leigo queria explicar que Jesus estava vivo na eucaristia. Ele não pôde responder muito bem à minha dificuldade infantil: «Então porque lhe fecham no sacrário tão pequenino? Os santos no altar já não são dos vivos, e não vai acontecer o mesmo a Jesus num espaço tão reduzido?». Não voltei a fazer tais perguntas quando a minha mãe pediu-me para conter a minha curiosidade, e convenceu-me que eu compreenderia as coisas melhor quando fosse mais crescido. Mas o que não me convencia facilmente era a necessidade de estarmos a repetir os pai-nossos e ave-marias durante quase um quarto de hora, seguidas de mais pai-nossos e ave-marias por dezenas de intenções que a minha mãe murmurava, ou que eu ouvia mal no meio do sono que pegava em mim logo que se começava o terço e só me deixava quando chegava a fase final de besanv. Eu e o meu irmão andávamos então em roda a pedir a benção de todos os familiares presentes, começando com os mais idosos. Havia uma fórmula para pedir essa benção: «Dev bori rat dium, mel'leank sorg, asul'leank bolaiki, ani amcher somestancher tujê kurpechem besanv ghal Saiba » (Concedei-nos Senhor uma boa noite, levai os mortos ao paraíso, dai saúde aos vivos, e a todos nós dai-nos Senhor a benção da vossa graça).

Não tenho dúvidas de que foi a minha mãe, e não a propaganda do Estado Novo ou a sua Mocidade Portuguesa, que deixou em mim os traços mais profundos dos Descobrimentos portugueses.

Sobre o autor

Teotónio R. de Souza (1947-2019). Historiador nascido em Goa, ex-sacerdote católico, foi fundador e diretor do Centro Xavier de Pesquisas Históricas. Era professor catedrático na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, no departamento de História. Foi diretor do jornal da Associação dos Cientistas Sociais do Espaço Lusófono e diretor-adjunto da revista Fluxos e Riscos- Revista de Estudos Sociais.