Os falsos plurais - Antologia - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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Os falsos plurais

Com as novas técnicas de fertilização, certas palavras passaram ao plural. Exemplos

«Já se disse tudo, mas como ninguém ouve, é sempre necessário recomeçar.» Esta frase de André Gide costumava abrir uma das secções da Critério, publicação relativamente periódica que saiu entre Novembro de 1975 e Novembro de 1976. Ao todo foram oito números: os primeiros seis dirigidos por João Palma-Ferreira e Alexandre O'Neill, escritores que nos andam a fazer falta (contentemo-nos com os muitos, embora poucos, livros que cá deixaram) e os dois últimos por Cardoso Ferreira. Abri com a citação de Gide porque talvez já tenha escrito coisas que surgem nesta crónica. Vou falar de falsos plurais, ou plurais inventados. O assunto é trivial, talvez frívolo; mas, se não soubermos resolver questões menores, como conseguiremos tratar das importantes? Hoje pouca gente vai para a tropa. Põe-se em causa o SMO. Não sabem o que é o SMO? Não admira; essa realidade agora em crise vinha do século XIX e atravessou o XX, mas não se usava a sigla. Acho estranho, todavia, que não se saiba o que é a tropa, modo vulgar (mas não forçosamente depreciativo) de designar as Forças Armadas. Se pegarmos num dicionário corrente (como o da Porto Editora), vem lá: «conjunto dos militares que prestam serviço nas forças armadas; (...) os soldados (...)». No entanto, vários canais de TV não sabem isso. Daí a frequência com que se ouvem frases assim: «(...) estiveram envolvidas na guerra 25 mil tropas britânicas» (canal História, 13/01/01); «Estavam ali 400 mil tropas» (idem, ibidem). Ah, como é fácil o inglês! Ouve-se «troops», e a tradução é «tropas», como podia ser outra coisa? Não se percebe o que é que não ensinaram a esta tropa - se o inglês, se o português. Tenho de reconhecer uma coisa lamentável: quando muito menos gente sabia inglês, não apareciam nos «media» estes erros. Tropa, sem s, tem já um sentido colectivo. Deviam dizer «25 mil homens» (ou soldados, ou militares). O que pergunto é se traduzir assim é saber inglês.

Um plural errado já habitual (até escritores incorreram nele) é dizer «binóculos» querendo falar de um só binóculo. Como sempre, a TV é pródiga em exemplos. «Washington estudou as fortificações britânicas através dos seus binóculos» (canal História, há poucos dias). Não consigo imaginar George Washington, que segundo os melhores historiadores tinha apenas dois olhos, observando os ingleses com dois óculos em cada olho. Teria certamente perdido a Guerra da Independência, com consequências de monta para a civilização tal como hoje a entendemos. O «bi» (ou «bini», ou «binu») indica dualidade, como em binómio, bimotor, bicéfalo, bicicleta, bimensal... Binóculo é simplesmente um óculo duplo, mas que escola se lembraria de ensinar isso?

Outro caso intrigante é o do correio - normal, azul, electrónico, o que quiserem. Significa correspondência, serviço de transporte e distribuição de correspondência, estação postal, etc. No meu tempo (refiro-me à remota segunda metade do século XX), em cada estação de correio havia um letreiro em relevo: «Correio». Comprovei há dias no Museu das Comunicações que também no século XIX e no começo do XX a palavra se usava no singular. Havia o marco do correio, a caixa do correio, ia-se ao Correio pôr uma carta. Uma canção de Fanhais chama-se, se bem me lembro, «À saída do Correio». E hoje não se diz «manda-me isso por correios electrónicos», porque a palavra, no singular, encerra um sentido plural, ou melhor, de correspondência (que, por definição, é pelo menos entre dois). O mesmo se dirá de «telégrafo» (não disse João Chagas que a República foi proclamada pelo telégrafo?). Não serviu de nada; alguém decretou que as estações de correio ostentassem, na fachada, «Correios».

Também me intrigam os «funerais» de uma só pessoa. Se só se morre uma vez (diga o James Bond o que disser), como é que uma criatura pode ter, ao mesmo tempo, mais do que um funeral? Quando muito, pode ser trasladada para jazigo de família, para os Jerónimos, etc. O latim eclesiástico tinha a palavra «funeralia», onde os franceses foram buscar «funérailles», e deve ter sido aí que um tradutor português foi buscar «os funerais» de um homem só - quem sabe se definitivamente só, embora acompanhado.

Outro fenómeno interessante é o das ilhas Maurícias. Qualquer revista de viagens estrangeira fala anualmente da ilha «Mauritius», «Maurice», «Mauricio», «Maurizio» (e vem assim no célebre atlas do Istituto Geografico De Agostini, Novara). Só em Portugal se pode ir «às Maurícias», como se a ilha, de avançada idade, tivesse tido filhas (ou uma gémea, ou um «clone»). Estive quase a acreditar. Com os progressos da ciência, nunca se sabe. Mas os recentes Time Almanac 2001 (Time Inc., Boston) e o anuário L'État duMonde 2001 (La Découverte, Paris) desiludiram-me; no Índico, continua a haver só uma ilha Maurício. E nem sequer mudou de sexo; Mauritius é masculino, vem da presença holandesa (já ouviram falar de Maurício de Nassau?). Quando os tais tipos que sabem inglês ouviram «Mauritius», traduziram, de outiva, «Maurícias». É decepcionante, mas é assim a vida das palavras e das coisas.

    fbelard@mail.expresso.pt

Fonte

Publicado no semanário português "Expresso" de 17 de Março de 2001

Sobre o autor

Francisco Belard (Beja, 1946), licenciado em História pela Universidade de Lisboa, é professor na Escola Superior de Jornalismo de Lisboa. A par dessa função, é ainda jornalista dos jornais diários República, A Luta, Diário de Notícias, do Semanário Expresso e colaborador na revista Ler.