A utilização do termo "Kinas" para designar a mascote oficial do Campeonato Europeu de Futebol, "UEFA Euro 2004", motivou um requerimento ao Governo português, subscrito por sete deputados do Grupo Parlamentar do Partido Socialista. Nesse requerimento, que a seguir se transcreve na íntegra, os deputados Luiz Fagundes Duarte, Rosalina Martins, Cristina Granada, Edite Estrela, Isabel Pires de Lima, Manuela Melo e Augusto Santos Silva querem saber, nomeadamente: «No caso de o Governo [português] concordar com o uso da forma ‘Kinas’, no contexto e com a finalidade com que ela está a ser usada, em que argumentos – políticos, linguísticos, históricos, pedagógicos, desportivos ou económicos – se baseia?» E, «se não concorda, que medidas tenciona o Governo [português] tomar no sentido de evitar que se cometa mais um grave atropelo à dignidade da Língua Portuguesa e dos símbolos nacionais, perpetrado, como é o caso, por uma entidade oficial como é a UEFA?»
Requerimento [ao Governo português]
Considerando
Que a Lei n.º 107/2001, de 8 de Setembro, que "Estabelece as bases da política e do regime de protecção e valorização do património cultural", determina que as bases da política e do regime de protecção e valorização do património cultural são "da maior relevância para a compreensão, permanência e construção da identidade nacional e para a democratização da cultura" (Art.º 1.º, n.º 1) ;
Que esta Lei determina ainda que "A língua portuguesa, enquanto fundamento da soberania nacional, é um elemento essencial do património cultural português", e que "O ensino, a valorização e a defesa da língua portuguesa e das suas variedades regionais no território nacional, bem como a sua difusão internacional, constituem objecto de legislação e políticas próprias" (Art.º 2.º, n.ºs 2 e 7) ;
E que a mesma Lei afirma que, em matéria de património cultural, "A negligência é punível" (Art.º 107.º).
Considerando também
Que as gramáticas normativas da Língua Portuguesa, bem como todos os dicionários autorizados, dão como fixo e adquirido que a consoante oclusiva surda [k] é representada, na ortografia da Língua Portuguesa, pela letra ‘c’ ou pelo grupo de duas letras ‘qu’, como acontece, respectivamente, em ‘casa’, ‘coisa’ ou ‘cúmulo’, ou em ‘que’, ‘quina’ ou ‘arenque’ ;
Que A Nova Gramática do Português Contemporâneo, de Celso Cunha e Lindley Cintra (1986), que tem valor de autoridade normativa, e à semelhança de todas as gramáticas da Língua Portuguesa, não considera a letra ‘K’ como constituinte do alfabeto da Língua Portuguesa, e restringe o seu uso à transcrição de nomes próprios estrangeiros e seus derivados portugueses (por exemplo, ‘Franklin’ e ‘frankliniano’), e nas abreviaturas e símbolos de uso internacional (como ‘K’, símbolo químico do potássio, ‘kg’, símbolo de quilograma, ou ‘km’, símbolo de quilómetro) ;
Que, embora nunca ratificado pelo parlamento português, o Protocolo do Encontro de Unificação Ortográfica da Língua Portuguesa, assinado no Rio de Janeiro a 12 de Maio de 1986, vulgarmente conhecido por Acordo Ortográfico de 1986, determina, como "Base I, Das letras k, w e y", que «O k, o w e o y mantêm-se nos vocábulos derivados eruditamente de nomes próprios estrangeiros que se escrevam com essas letras : frankliniano, kantismo, darwinismo, wagneriano, byroniano, taylorista. Tais letras são lícitas em siglas, símbolos, abreviações e mesmo palavras adotadas como unidades de medida de curso internacional» (conserva-se aqui a ortografia usada no documento) ;
E, finalmente, que o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa (2001), apenas integra palavras em que ocorre a letra ‘K’ nos termos definidos pelas gramáticas normativas e pelo texto do Acordo Ortográfico de 1986, supracitados. Curiosamente, este dicionário regista a palavra ‘kina’, com o plural ‘kinas’, como um substantivo que designa a unidade monetária da Papua-Nova Guiné.
Considerando ainda
Que o material de divulgação do "UEFA Euro 2004", e em concreto o n.º 3 da revista "Newsletter" (Março de 2003), órgão oficial da organização do Campeonato, escrita em Língua Portuguesa, apresenta ao público o símbolo adoptado para mascote do campeonato, a figura estilizada de um jovem jogador de futebol chamado ‘Kinas’ ;
Que, na referida "Newsletter" – expressão inglesa aqui desnecessariamente utilizada em substituição de palavras tradicionais portuguesas portadoras do mesmo significado, como "revista" ou "boletim" –, encontramos um texto intitulado «KINAS – A MASCOTE DO UEFA EURO 2004» (pp. 4-5), onde somos informados de que ‘Kinas’ é um rapaz nascido numa «pequena e remota aldeia Portuguesa», ao qual uma conjugação de factores extraterrestres, verificada no dia do seu nascimento, concedeu «um dom muito especial – o talento e o conhecimento de todos os grandes jogadores da história do futebol, passado e presente» ; impressionados com tais talentos revelados à nascença, os pais do rapaz decidiram baptizá-lo com o nome ‘Kinas’, um nome que, como é dito no texto da "Newsletter" em causa, tem «uma ligação próxima a um símbolo português importante, os cinco escudos do brasão nacional», e que viria a transformar-se, «a curto prazo, numa marca registada, passando a escrever-se KINAS». Em suma, e no entender dos autores do texto, «Kinas personifica a hospitalidade, as tradições históricas e o espírito caloroso, amigável e cultural de Portugal» ;
E que o texto «KINAS – A MASCOTE DO UEFA EURO 2004» foi escrito num registo de moralidade, sob a forma de conto para crianças, o que o caracteriza logo à partida como um instrumento de cariz pedagógico ou, no mínimo, de informação apelativa para crianças e jovens em idade escolar.
Os deputados do Grupo Parlamentar do Partido Socialista abaixo assinados são levados a entender:
Que a forma gráfica ‘Kinas’ pretende substituir a palavra tradicional "Quinas", numa alusão directa e justificada ao escudo com as quinas, um dos símbolos nacionais portugueses;
Que, mesmo com esta aproximação expressa a um dos símbolos nacionais, o "UEFA Euro 2004" sugere que a criação e a utilização da suposta palavra ‘Kinas’ tem um objectivo económico, na medida em que a considera "uma marca registada";
E que, não existindo na Língua Portuguesa a forma ‘Kinas’ – que, nesta perspectiva, é uma falsa palavra que resulta de um abuso gráfico, constituindo por isso um erro –, são levados a concluir que a sua escolha, em substituição da palavra tradicional portuguesa "Quinas" para designar a mascote de um acontecimento desportivo internacional que vai, de algum modo, representar a Nação Portuguesa, não tem justificação linguística nem histórica, sendo por isso desadequada e abusiva, contrariando o disposto nas leis que determinam a protecção da Língua Portuguesa – configurando, neste caso, um acto de negligência – e a dignificação dos símbolos nacionais.
Nestes termos, os mesmos deputados requerem, ao abrigo das normas constitucionais e regimentais em vigor, que pelo Governo lhes sejam prestados, em tempo útil, os seguintes esclarecimentos:
1. Entende o Governo, na sua qualidade de órgão de soberania nacional, que o uso da forma anómala ‘Kinas’, em substituição da palavra "Quinas", nos termos e contexto acima referidos, não constitui um atentado à dignidade da Língua Portuguesa e dos símbolos nacionais?
2. Entende o Governo que o uso da referida forma anómala, e a maneira como é apresentada, não contraria princípios e normas legais que visam
2.1. Promover a educação dos jovens (e como se poderá ensinar a uma criança que a letra ‘K’ não existe no alfabeto português, quando um organismo oficial lhe impõe um modelo de ficção, de resto muito apelativo, chamado ‘Kinas’ ?),
2.2. Defender a Língua Portuguesa (como se pode defendê-la, e ao mesmo tempo aprovar e utilizar, oficialmente, uma forma como ‘Kinas’ para baptizar um rapaz nascido numa «pequena e remota aldeia Portuguesa», e adoptar títulos como "Newsletter" para uma revista escrita em português e publicada em Portugal ?), e
2.3. Divulgar no estrangeiro valores e produtos portugueses (fazendo-se referência directa às “tradições históricas”, mas baptizando-os com supostas palavras que, além de não integrarem a Língua Portuguesa, mais parecem resultar de uma brincadeira inconsequente com os símbolos nacionais)?
3. Entende o Governo que algum cidadão ou empresário estrangeiro, só pelo facto de ver escrita a forma ‘Kinas’, liga de imediato o seu conteúdo a Portugal, e que o mesmo não aconteceria se a palavra tivesse a sua forma correcta, tradicional e portuguesa, "Quinas"?
4. No caso de o Governo concordar com o uso da forma ‘Kinas’, no contexto e com a finalidade com que ela está a ser usada, em que argumentos – políticos, linguísticos, históricos, pedagógicos, desportivos ou económicos – se baseia?
5. Se não concorda, que medidas tenciona o Governo tomar no sentido de evitar que se cometa mais um grave atropelo à dignidade da Língua Portuguesa e dos símbolos nacionais, perpetrado, como é o caso, por uma entidade oficial como é a UEFA?
Palácio de São Bento, em Lisboa, 9 de Abril de 2003.
Os Deputados,
Luiz Fagundes Duarte
Rosalina Martins
Cristina Granada
Edite Estrela
Isabel Pires de Lima
Manuela Melo
Augusto Santos Silva