A invenção dos adjetivos - Antologia - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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A invenção dos adjetivos
A invenção dos adjetivos
No tempo de Adão e Eva

«(...) Não haver adjetivos levava a que Adão e Eva, quando queriam comunicar algo menos substantivo, o tivessem de fazer por metáforas. (...)»

 

No princípio não havia adjetivos. Só havia substantivos, como o sol, a terra, o céu, a serpente, etc.

E também havia o verbo, claro, mas isso todos sabemos das escrituras. Consta que Deus, quando construiu o homem à sua imagem, terá, com receio de críticas futuras, ordenado:

– Não me adjetiveis.

Ora o não haver adjetivos levava a que Adão e Eva, quando queriam comunicar algo menos substantivo, o tivessem de fazer por metáforas. Mas estar sempre sempre a arranjar metáforas cansava-os sobremaneira. Era o que pensava Adão: se inventasse os adjetivos poderia descansar um pouco mais das metáforas que tanto lhe custava encontrar. Mas, naturalmente, tinha receio da ira divina. Os adjetivos podiam ser para não adjetivar Deus, é certo, porém, cedo ou tarde, poderia acontecer. E andava Adão, qual adepto do peripatetismo, de um lado para o outro do paraíso, a pensar nestas coisas, quando viu Eva. Eva estava assim como uma borboleta tomada pela brisa do pôr de sol e, com uns olhos que irradiavam uma luz desconhecida, disse a Adão:

– Oh, Adão, olhei para a serpente e fiquei assim não sei quê.

– Assim, como?

– Assim como aquele ribeiro tão fresquinho, cheio de entusiasmo, 'tás a ver?"!

E dito isto, sem pensar no que fazia, agarrou numa maçã. Adão ainda tentou evitar a sucessão de acontecimentos, mas ficou paralisado. Eva deu uma dentada na maçã e disse:

– Hmmm... Se sabe bem esta maçã! Deus é mesmo cupidíneo!

E Deus apareceu, furioso e não cupidíneo. Estavam inventados os adjetivos.

Fonte

Crónica do escritor Fernando Évora, transcrita, com a devida vénia, da revista ASSESTA, da Associação de Escritores do Alentejo, de junho de 2023.

Sobre o autor

Licenciado em História, romancista e contista português, autor, entre outros livros, de Como se de uma fábula se tratasse (2008),  No país das porcas-saras (2010), Amor e Liberdade de Germana Pata-Roxa (2012), O Mel e as Vespas (2015) e Hamsters de Biblioteca (2016). Galardoado o prémio Damião de Odemira, em 1999, e, no ano seguinte, com  o prémio da ARCA, ambos na modalidade de conto. Em 2001 publicou pelas Edições Colibri A fonte de Mafamede, como resultado de menção honrosa obtida no Prémio Literário Manuel Teixeira Gomes.