A pluralização de substantivos abstratos não tem por resultado sistemático a associação de traços semânticos concretos.¹ Há casos em que, na verdade, o substantivo muda de significação e se torna menos abstrato ou mesmo concreto na passagem ao plural: fala-se da beleza (abstrato) de um quadro, mas usa-se belezas (concreto) no sentido de «pessoas/coisas/lugares que têm beleza» (daí «belezas naturais»). Contudo, outros substantivos há em que tal não ocorre, mantendo-se o valor abstrato no plural: por exemplo, ciúmes, o plural de ciúme, não perde a interpretação abstrata que tem no singular, o mesmo acontecendo com o plural de saudade, saudades.
Maria Helena de Moura Neves, em Gramática de Usos do Português (São Paulo: Editora Unesp, 2000, pág. 84-85), apresenta vários exemplos de substantivos classificáveis como abstratos que não se tornam concretos no plural, entre os quais se cita aqui o seguinte:
1) «Não vá causar ciúmes ao artista.» = «Não vá causar ciúme ao artista.»
A este exemplo, proponho juntar este outro:
2) «Recordo a minha terra com saudades.» = «Recordo a minha terra com saudade.»
Embora Moura Neves não se refira especificamente às categorias concreto/abstrato, que não fazem parte do seu quadro de análise¹, mas, sim, à oposição contável/não-contável, é importante registar o que ela afirma acerca dos substantivos não-contáveis, entre os quais se incluem muitos dos tradicionalmente chamados abstratos (idem; negrito no original):
«[Nos referidos] casos, por exemplo, os substantivos no plural são não-contáveis porque a forma singular pode ser usada sem oposição semântica com a forma plural [...].»
Ou seja, nesta passagem, a linguista brasileira considera que a pluralização de um substantivo não-contável não altera esta característica semântica. Do mesmo modo, considero que, no caso da oposição abstrato/concreto, existem substantivos de significado abstrato (ciúme, saudade ou perspetiva) que mantêm esse valor mesmo no plural (ciúmes, saudade, perspetivas).³
1 Ao que parece, no contexto escolar brasileiro, costuma dizer-se erradamente que os substantivos abstratos não devem ter plural ou, se o têm, passam a ter valor concreto. Sobre a falsidade de tal generalização, ler o artigo de Sílvio Rodrigues, "Saudade ou saudades? Felicidade ou felicidades?", de 17/11/2011, disponível na edição em linha da revista Veja.
2 Em linguística, considera-se geralmente que a oposição abstrato/concreto é pouco rigorosa, por não se apoiar em evidências de caráter linguístico.
3 Com a palavra perspetiva, o valor abstrato mantém-se no plural: «Esta experiência deu-lhe uma nova perspetiva sobre a vida.»/«Esta experiência deu-lhe novas perspetivas sobre a vida.»