Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Relativamente à frase que se segue, perguntava-vos se o verbo levar admite neste contexto a preposição destacada:

«Uma criança quando amada terá o hábito de levar esse sentimento PARA os outros.»

Obrigado

Resposta:

A preposição preferível é a preposição a, adotando a frase a estrutura que se apresenta em (1):

(1) «Uma criança quando amada terá o hábito de levar esse sentimento aos outros.»

Em primeiro lugar, deve usar-se a preposição a porque o constituinte «os outros» desempenha a função de complemento indireto, uma função que, habitualmente, é introduzida pela preposição a.

Em segundo lugar, a preposição para, quando combinada com o verbo levar, assume sobretudo um sentido locativo: «levar de um lugar para o outro»; «levar algo para aquele local», pelo que não será a mais ajustada para o uso em análise. 

Disponha sempre!

Pergunta:

É possível que a sintaxe do verbo deixar admita a preposição destacada?

«Ana deixou uma carta PARA Rui.»

Obrigado.

Resposta:

A preposição para é admissível na frase em apreço. Todavia, esclareça-se que esta preposição não está dependente do verbo deixar porque não introduz um constituinte cuja função se defina em relação ao verbo. Na verdade, o constituinte «para o Rui» relaciona-se com o substantivo carta, desempenhando a função de modificador restritivo do nome.

Pelas razões atrás expostas, o verbo deixar não exerce influência sobre a preposição para na frase.

Se o que se pretende é indicar o paciente da ação de «deixar a carta», a preposição adequada será a preposição a, porque o constituinte desempenhará a função de complemento indireto:

(1) «Ana deixou uma carta ao Rui.»

Disponha sempre!

Pergunta:

No texto «em 10 anos tivemos muitas ideias más», a continuação deverá ser «foram todas aquelas que eram necessárias para encontrar as boas» ou «foram todas aquelas que foram necessárias para encontrar as boas»?

Agradeço antecipadamente a vossa atenção.

Resposta:

As duas possibilidades são aceitáveis. Veiculam, contudo, significados ligeiramente distintos.

A opção pelo pretérito perfeito, na forma foram, serve para descrever uma situação passada que já está concluída, fechada. O uso do pretérito imperfeito permite descrever uma situação perspetivada num tempo passado alargado. A situação é descrita no seu decurso e não se sabe se foi concluída.

Assim, a opção por um destes dois tempos verbais prender-se-á com a intenção do locutor: pretende descrever um situação dada concluída? Ou pretende colocar a tónica do processo de procura das ideias? Em função disso, selecionará respetivamente o pretérito perfeito ou o pretérito imperfeito.

Não obstante, verifica-se um problema na qualidade da frase, pois a opção pelo pretérito perfeito levaria, a adotar a construção proposta pelo consulente, à repetição da mesma forma verbal, o que torna a frase pouco elegante:

(1) «[…] foram todas aquelas que foram […]»

Convém então acrescentar que a construção proposta é um pouco pesada porque inclui muitos verbos. A eliminação de algumas das formas verbais poderá melhorar a construção frásica. Fica uma sugestão:

(2) «Em 10 anos tivemos muitas ideias más: todas aquelas que eram/foram necessárias para encontrar as boas.»

Também é possível eliminar as formas verbais e a oração relativa, o que tornará a frase mais simples e mais elegante para o ouvido:

(3) «Em 10 anos tivemos muitas ideias más: (todas) as necessárias para encontrar as boas.»

Disponha sempre!

Pergunta:

Fiquei responsável de redigir uma ata de reunião e corrigiram o tempo verbal associado à passagem para o discurso indireto. A frase era mais ou menos a seguinte:

«As professores X e Y comunicaram que, no dia Z, seria feita a entrega de prémios do concurso de poesia.»

Escrevi "seria", usando o condicional, partindo do princípio de que devia respeitar as regras de transposição de discurso direto para indireto, assumindo que em discurso direto teria sido usado o futuro do indicativo. Saliento que a ata foi lida e aprovada na reunião seguinte, portanto depois do referido evento (a entrega de prémios) já ter sido realizado.

Consultei as gramáticas de referência, como a da Gulbenkian, e percebi que de facto, por vezes, as regras mais "clássicas" não devem ser aplicadas, mas não encontrei qualquer regra que justifique que tenham corrigido "seria" e passado para "será". Há alguma regra que eu desconheça e que faça com que esta correção esteja correta?

Agradeço muito se me puderem responder, porque estou tentada a continuar a escrever no condicional, quando se tratar da citação em discurso indireto sobre algo que se prevê para o futuro.

Obrigada.

Resposta:

Na transposição da frase em questão para o discurso indireto é possível recorrer tanto ao futuro do indicativo como ao condicional.

As regras preconizadas pela gramática tradicional, e normalmente ensinadas em contexto pedagógico, são muitas vezes redutoras face às possibilidades de construção do discurso relatado1. Assim, uma frase simulada de discurso direto como (1) pode ser reproduzida em discurso indireto pelas frases (2) a (4), entre outras:

(1) «Comunicamos que, no dia x, será feita a entrega de prémios do concurso de poesia.»

(2) «As professores X e Y comunicam que, no dia Z, será feita a entrega de prémios do concurso de poesia.»

(3) «As professores comunicaram que, no dia Z, seria feita a entrega de prémios do concurso de poesia.»

(4) «As professores X e Y comunicaram que, no dia Z, será feita a entrega de prémios do concurso de poesia.»

A seleção destes tempos/modos verbais respeita a consecutivo temporum2, na medida em que o importante é que se veicule a ideia de que a entrega será feita posteriormente ao ato de comunicar.

Note-se ainda que a opção pelo futuro do indicativo ou pelo condicional também poderá estar relacionado com uma intenção modal. Assim, o futuro expressa uma modalidade epistémica com valor de certeza ao passo que o condicional se pode associar à modalidade epistémica com valor de probabilidade.

Disponha sempre!

 

1. Cf. Duarte in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 2597.

2. Vejam-se algumas combinações possíveis entre o tempo da subordinante e o da subordinada em Oliveira in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 543 – 544.

Pergunta:

Gostaria de saber se em «Vinha pela rua a falar sozinho para si mesmo: "Não irei lá!"» é correta a construção «sozinho para si mesmo». Não seria um pleonasmo «sozinho para si mesmo»?

Muito obrigada e parabéns pelo trabalho!

Resposta:

A expressão pode ser entendida como algo redundante, mas tal não significa que esteja incorreta, pois poderá estar ao serviço de uma intenção expressiva.

O adjetivo sozinho significa «que está completamente só, sem mais ninguém», ao passo que falar é uma atividade que, normalmente, envolve mais do que uma pessoa.  Deste modo, a expressão «falar sozinho» já pressuporá que o locutor desenvolve a atividade de falar apenas para si, não a dirigindo a um interlocutor, pelo que não será necessário acrescentar «para si mesmo» porque a expressão não traz informatividade à frase.

Não obstante, a expressão «falar sozinho para si mesmo» pode implicar outras intenções como o contraste entre «falar para dentro» vs. «falar para o ar»; «falar baixo» vs. «falar alto» e, neste caso, a expressão «para si mesmo» já não será redundante.

Deste modo, o conhecimento do contexto de produção e das intenções do locutor será importante para a avaliação da pertinência do uso de «para si mesmo» na frase em análise.

Disponha sempre!